JUSTIÇA DIVINA – 25/06/2022

JUSTIÇA DIVINA

Oração a Xangô, Senhor da Justiça Divina:
“Poderoso Orixá de Umbanda, Pai, companheiro e guia, Senhor do equilíbrio e da justiça, auxiliar da Lei do Carma
Só Vós tendes o direito de acompanhar, pela eternidade, todas as causas, todas as defesas, acusações e eleições promanadas das ações desordenadas dos atos puros e benfazejos que praticamos.
Senhor de todos os maciços e cordilheiras, símbolo e sede da Vossa atuação planetária no físico, no astral e no mental.
Soberano Senhor do equilíbrio e da equidade, velai pela inteireza do nosso caráter. Ajudai-nos com Vossa prudência.
Defendei-nos das nossas perversões, ingratidões, antipatias, falsidades, incontenção da palavra e julgamento indevido, dos atos dos nossos irmãos em humanidade.
Só Vós sois o grande Julgador.
Kaô Cabiesilê Xangô!”

Que o senhor do impossível nos permita enunciar com escureza a partir dessa encruzilhada que intersecciona gênero, raça e classe social. Que Exú, com seu Ogó, abra todos os caminhos para essa comunicação e faça o erro virar acerto. Que Exú, que nos dá a possibilidade de arrependimento, permita a materialização da justiça e da reparação histórica ao nosso povo. E que a espada de Ogum e a flecha de Oxóssi estejam a serviço da justiça de Xangô e da paz de Oxalá! Ogunhê, meu pai. 

Saúdo todas as Yabás, em especial a minha mãe Matamba. Eparrey, Oyá! Que a guerreira da justiça continue a nos guiar e os seus ventos demonstrem a potência das mulheres negras, que possuem a leveza de uma borboleta e a força de mil búfalos. Que a união da força espiritual do feminino e do útero que pariu toda a humanidade possam ser motores da transformação que precisamos. Salubá, Nanã. Ora iê iê, Oxum. Odoyá, Iemanjá.

Nesse contexto, a figura de Xangô aparece como guardião da ordem e como orixá do fogo, dos raios, do trovão e da justiça. Carrega consigo um machado de dois gumes, o Oxé, que representa o equilíbrio que mantém o universo balanceado e consistente. A justiça de Xangô se apresenta, pois, como uma justiça responsiva, que enxerga, que ouve e que distribui de maneira equânime.

Para melhor fundamentar o que queremos dizer, abrimos espaço para a fala potente de um legítimo filho do Rei de Oyó, Lucas dos Prazeres:

Eu canto o amor justo,
Eu canto o amor que vê.
Eu canto a justiça que enxerga.
Na minha voz,
a luz do discurso,
o ecoar do fogo forense,
no divino foro da transformação.

O que é a Justiça de Xangô? Se não sabemos o que é algo, como vamos saber avaliar se este algo está ausente ou presente em nossas vidas?

Pra você, o que é justiça? Uma sociedade que tanto fala em justiça, provavelmente é porque carece dela!

Tendo ainda que enfrentar a Era da escassez dos símbolos, do vício das palavras esvaziadas e conceitos rasos, e da tentativa de silenciar nossa história e apagar nossa memória ancestral.

A justiça de Xangô está para além do ordenamento jurídico, ampliando o olhar para a força das leis do universo que regem a natureza humana e todas as formas de vida na TERRA.

Partiremos da compreensão de que tudo tem seu lugar, seu ponto de harmonia com o todo. Assim como a lei da gravidade, que é uma condição planetária e se manifesta independente das teorias, também temos a Lei do Pertencimento, segundo a qual todos os seres têm o direito de pertencer. Tudo tem seu lugar natural.

Justiça é a lei da ORDEM universal, onde cada coisa em seu devido lugar encontra sentido e potência.

Para ordenar esta grande orquestra planetária é preciso, antes de tudo, ter a ética de olhar pra si mesmo(a) dentro do julgamento. Se enxergar como exemplo a iluminar a decisão.

Xangô tem a obrigação de uma responsabilidade cármica ao julgar. Isso significa que sua decisão também se tornará seu carma. Por isso mesmo, quando julga, o faz sob a lâmina de seu próprio machado, que ao primeiro erro, degola a si mesmo.

Tornou-se assim o Orixá da Justiça, pois em sua grandeza e sabedoria, no bater do martelo, nunca errou a sentença.”

Ao me deparar com esse texto, eu me perguntei: será que as decisões seriam as mesmas se a magistratura brasileira decidisse sob a lâmina do machado de Xangô? Será que se o peso do próprio martelo pudesse esmagar a hermenêutica que encarcera corpos negros, continuaríamos sendo 2/3 da população carcerária? E se a justiça retirasse a suposta venda e empaticamente enxergasse as diversas opressões que intercruzam os nossos corpos, será que ela continuaria a legitimar a violência contra as mulheres? Sob o julgo do Oxé, será que os juízes brasileiros criariam as figuras do racismo recreativo ou estupro culposo no Brasil?

Temos a certeza de que não. Por essa razão, precisamos aproximar o direito de outras propostas éticas e de outros princípios morais, que não os eurocêntricos. A nossa proposta é a de que, a partir da ética dos terreiros possamos construir uma epistemologia para entender a justiça como resultado de relações interdimensionais, que conectam passado, presente e futuro, em uma cosmovisão capaz de fazer frente à complexidade da pós-modernidade. Propomos a substituição da mitologia grega pelas lições do panteão afro-ameríndio, como ferramenta disruptiva dos sistemas de opressão, sobretudo do racismo patriarcal. Procuramos as fissuras do mito da razão do sujeito universal para fazer surgir uma contranarrativa ético-jurídica a partir do nós.

Axé

Chiara Ramos e Lucas dos Prazeres